Notas Expressas

Tivemos um enxugamento do nosso corpo de repórteres, mas estamos, aos poucos, retomando o ritmo de publicação de matérias.
(atualizado em 20 de outubro de 2007)


sábado, 23 de dezembro de 2006

Dia do Leitor

O conto da manhã esquecida
por Marcus Rodolfo Bringel

Hoje está bem frio, ela pensa. Nos últimos tempos, o que mais havia feito era isso. Pensar consigo e para si mesma, tentando dar continuidade a um raciocínio há muito perdido. E tentar recuperar, talvez, uma resposta para tudo. Tudo o que havia procurado, tudo o que havia causado, enfim, os vários tudos em sua vida. Não seria a vida também algo a se pensar? Não seria também uma forma de estar vivo, pensar na vida? Mas, havia algo realmente a se pensar, ponderou ela. Acho que não, logo se respondeu.

Estranho como os dias tristes são mais frios, como os nossos membros doem, como nossa face se regela com a brisa mais calma, que traz toda a tristeza para onde nunca houve felicidade. É, essa atmosfera de noite de verão realmente não condiz muito com a maioria das pessoas, mas, pensou ela, é praticamente o meu espírito. Essa brisa doce e triste e doentia que balança as palmeiras nessa praia que agora eu vejo, que vem dessas ondas azuis e violentas como a própria dor que eu sinto. Sim, essa brisa é como a minha alma: pode logo se tornar em furacão.

Então ela fecha a janela e se senta na cadeira. Encosta o rosto no vidro frio e vê a sua respiração embaçando a vidraça. Um sopro de vida. O que me impede de ser feliz. A minha respiração. Seria essa a causa de tudo e dos tudos? Já não sente mais a parte da face encostada na janela. E se não sentisse mais nada: como seria? Seria suave e reconfortante como dormir um sono profundo? O que sentiria ao deixar de sentir tudo? A dor ainda continuaria aqui?

Ela se levanta. Morde o lábio. Um cacoete da infância, quando ela sentava no parapeito da janela e olhava a rua, as pessoas passando na calçada da praia, logo de manhãzinha, quando esse mesmo ventinho frio vinha gelar-lhe as pontas dos dedos do pé. E ela mordia o lábio como que sentindo cócegas nos pés. Como se mais alguém estivesse ali. E havia um sorriso por trás de tudo. Onde se escondera esse sorriso?

Descalça, sente o tapete do quarto. Sente as fibras quentes e macias tocando-lhe os pés. Uma diferente sensação de dejavu apodera-se dela e se sente mais presente ali do que jamais estivera. Onde se escondia essa sensação de encontro durante todo esse tempo? Será que era isso que fazia falta em tudo: sentir realmente estar aqui, que seu lugar é realmente aqui e não...

Em pé, no meio do quarto, ela olha as paredes. Alcova. Ali mesmo. Finalmente. Estava em casa. De alguma maneira, ela estava em casa. De alguma maneira, ela se sentia presente.
Vislumbrou outra vez as paredes do quarto e viu o espelho e se viu no espelho. Aqueles cabelos, que durante tanto tempo a irritaram, agora faziam parte dela. Os seus olhos, que haviam visto tudo e tantos e tantos outros olhos, agora lhe pareciam mais seus do que nunca, finalmente conquistara seu próprio olhar. Ele que tantos já conquistara. O seu rosto, ainda que pálido, parecia ser o seu mesmo.

Mas o que isso poderia mudar?

Nada mais mudaria.

Mas ela mudara naquele momento. Algo a fizera se mover daquele lugar tão seu, mais seu do que ela própria já fora de si mesma alguma vez na vida.

Fecha as cortinas. As janelas agora apenas transparecem através desse véu diáfano, trazendo uma luz amarelada e suave. Pensa que aquela cortina é como sua alma: enevoada, translúcida, ao mesmo tempo que sólida e impenetrável. O que havia dentro de si?

Caminha em direção ao banheiro e pára na porta. Fecha os olhos e se mira por dentro. O que há dentro de si?

Fica uns minutos no banheiro, mas não fecha a porta. Faz questão de encontrar o que sempre procurou. O que haverá dentro de si?

Volta ao quarto e num olhar rápido, percebe o quarto. Tudo lhe era tão familiar.

Caminha languidamente até a cama. Sente o frio do chão, os pés tocando a única coisa que a impede de sentir. O que há por baixo de tudo?

Senta-se na beira da cama e abaixa a cabeça. Encosta os cotovelos nos joelhos e olha para os próprios pés. As unhas ainda bem pintadas de uma cor clara, embora indistinta, já começam a mostrar-se meio lascadas. É preciso fazer algo.

Coloca os travesseiros na cabeceira e ali se recosta; coloca os braços sobre a cabeça. Olha em direção ao nada. Sua cortina ali em frente impedindo que veja a vida, a cor real de tudo. Há alguma cor na realidade.

Abaixa a cabeça e pensa na dor que sempre sentiu. Essa dor que se irradia por todo o corpo e lhe tolhe a razão. Aquela dor tão companheira e tão inimiga. Uma dor que nada significa, uma dor que é toda ela mesma. Ela que já é uma dor.

Ela levanta a cabeça e se sente cansada. Já fizera demais. Mas não quer dormir, quer sentir um pouco ser ela mesma por hoje. Mas não quer nada da realidade hoje. Quer ser ela mesma por alguns momentos sem precisar sentir que tem de fazer parte da realidade. Seus olhos semicerram- -se por alguns momentos, mas ela se obriga a acordar.

Quer mais alguns momentos longe da realidade.

Olha de novo para a janela.

A cortina estava mal fechada.

Uma fresta que mostra o céu azul escuro com nuvens, sem nenhum véu que a impeça de ver o que há, de verdade.

Vê a realidade.

Sente saudades.

...


Marcus é estudante do quinto semestre de Letras/Português na UnB.

Sábado é o dia do leitor no Blog do Cacom. Participe enviando seu texto para blogdocacom@gmail.com.

Um comentário:

Anônimo disse...

Sublime Marcus

Sei que vc não esta longe do nosso mundo ta aqui pertinho

Parabéns como sempre suas palavras me encantam.

Um abraço, NITHYAMA