Artigo
Um filme de mocinhos e bandidos
Por Leyberson Lelis
Encenada por samurais, juventude transviada e até por agentes da swat, a manifestação de ontem na rodoviária foi estrelada pelo descaso dos verdadeiros vilões, distantes dali, em seus carros importados com ar condicionado.
Não é um filme, mas poderia ser. Um misto de comédia e terror. O terror: seres humanos que são contaminados pela poluição da queima de gasolina entram em conflito. A comédia: o jornal anuncia o aumento da passagem e, perplexos, ficamos com a cara dos três patetas. Não, não é um filme. E eu não acredito que o trecho "tentar pular as catracas atrapalha o cidadão de bem e apedrejar ônibus só dá mais custos para os cofres públicos e coloca os passageiros em risco" seja o objetivo da manifestação que ocorreu na Rodoviária de Brasília na primeira sexta-feira de janeiro de 2006. Pelo que venho acompanhando do movimento, esse também não é o foco das pessoas sérias. Pular catraca é algo que está inserido na forma de protesto do Movimento Passe Livre (MPL). Mas apedrejar ônibus? Não.
O MPL e a maioria das pessoas que participou do ato ontem são pacíficos e lutam pelo direito do cidadão de ter um transporte gratuito. Sobre a manifestação como forma de protesto posso dizer que a fórmula não é nova e vários segmentos da sociedade em todo mundo a utilizam. Está desgastada? Talvez. Mas precisamos de novas idéias. Até que ela apareça, não há como sair descartando todas as fórmulas antigas. Eu, particularmente, sou contra os conflitos físicos entre os cidadãos. Deposito minha ânsia de violência nos filmes clichês de luta e perseguição. (Eu gosto de assisti-los, não vou mentir). Contudo, sou a favor das manifestações puxadas pelo MPL porque não li no roteiro nenhum clímax que citasse a palavra sangue.
A guerra dos civis
A guerra civil se instalou ontem. Culpa dos manifestantes? Em parte. Entretanto, partiu de uma minoria que se utilizada de uma radicalização perigosa: o conflito. A maioria das pessoas ali, repito, não foi lá para entrar em conflito. Eu acompanhei toda a manifestação a partir dos limites do meu campo visual e procurei me atentar às diversas reações. As pessoas ao redor, pela primeira vez, estavam apoiando a luta política dos jovens presentes. Elas se assustaram. Mas não foi com os jovens. E sim por causa da excessiva repressão da força policial. Desnecessária. Eu fiquei muito, mas muito abismado com o fato de ter uma cavalaria armada com espadas - instrumento medieval - e vestido com armaduras ao estilo dos samurais. Também fiquei assustado com policiais militares que, responsáveis por outra parte da culpa, colocaram adesivos da "Swat"(sem generalizar), isso mesmo, da "Swat", em cima de seus nomes na farda. Como também fiquei assustado no momento em que os jovens foram afastados como gado com cassetetes pelo contingente policial absurdo, acompanhados pelo Bope e pelos cavaleiros montados. Os cavalos estavam em posição estratégica de defesa – com as espadas levantadas, é claro. Percebi que nossa polícia está bem treinada. Só não mostraram direito quem são os verdadeiros bandidos.
Assim, iniciava-se o primeiro set de violência. Motivados pelo “Poder da Polícia”, legalmente instituído, os militares receberam ordens de desmontar a manifestação pacífica da “milícia” por meio de violência para – adivinhem – reconstituir a paz. Além da chuva, uma fina garoa de pedras e outros objetos começaram a cair nos policiais. Atiradas por alguns manifestantes, atrás da concentração do grupo de jovens. Atiradas também por pessoas que passavam na parte superior da rodoviária. Por senhores de idade, por mendigos. Por pessoas com deficiência mental (em sentido denotativo, sem espaço para interpretações de mal gosto). Até o lixo e os piquis dos ambulantes - por mais engraçado que seja – viraram arma. E não foram os jovens que simplesmente começaram a atacar.
Seis policiais feridos. Fato que não deveria acontecer. Foram jovens e crianças com hematomas de cassetete, quase duas dezenas presas. E olha que o Estatuto da Criança e do Adolescente garante o direito de que todos nessa faixa etária estão em período de formação e que a sociedade é responsável por eles. Garante também que eles não serão simplesmente presos, mas reintegrados quando estiverem em estado de conflito com a lei por meio de medidas sócio-educativas. Mas até crianças apanharam.
Fotógrafo machucado. Vidros de ônibus quebrados. A cavalaria invade a parte coberta, onde as pessoas esperavam o tumulto parar para pegar os caros ônibus. (cavalaria armada com espadas, as mesmas que decepam nos filmes de época). Passageiros amedrontados. Policiais batendo nos jovens em via pública. Muitos em cima de poucos jovens. Manifestantes revidando. Não todos, mas revidando, é claro. Não há inocentes, não há santos. Entretanto, a maioria querendo uma manifestação pacífica, com faixas e gritos de protesto. Outros, em quantidade menor, agindo como se fossem rebeldes revoltados e transviados.
A manifestação não foi tão simples como apareceu nos jornais. Aconteceu uma guerra? Sim, mas quem eram os criminosos, os manifestantes ou a polícia? Nenhum dos dois. Ambos têm sua culpa, mas a repressão, as tropas de choque, a falta de bom-senso e o uso excessivo da violência militar, ao meu ver, são explicadas por um só termo: guerra civil (mesmo temporária), que se configurou exatamente no lugar mais exótico e comum de todos, a rodoviária. Um lugar que concentra todo o sofrimento da população que arca com a difícil lida diária e com os prejuízos do interesse particular dos empresários.
Direito e dever
O transporte está na constituição como um direito das pessoas e um dever do Estado. Mas quem restringe esse direito? O sistema de transporte público é privado. Uma incoerência. Os empresários argumentam que estão com déficits em seus orçamentos. Eles, os mesmos que têm uma das passagens mais caras do Brasil e péssimos ônibus. Aqueles que têm até uma associação que serve como fundo para cobrir os seus "prejuízos". Por isso, não creio que o acontecimento de ontem seja algo tão simples como dizer que os estudantes passaram dos limites. O que passou dos limites foi o desrespeito com a sociedade em virtude do aumento dos encargos advindos das negociatas empresariais.
Eu analiso - com o alerta de não ser imparcial em nenhum momento. Afinal, tenho meus interesses nessa discussão – que, muitas vezes, esquecemos ou não temos a oportunidade de olhar as coisas em seu contexto e acabamos crucificando sem querer um acontecimento sem realmente entendê-los. Olha, tudo isso para falar também que ninguém ateou fogo ontem. Estive na rodoviária das 18h20 até às 21h15 - término de toda a confusão local. Acompanhei a manifestação, as confusões e, bem de perto mesmo, a cobertura dos jornalistas.
Pelas poucas matérias que li hoje, muitos deles foram hipócritas ao relatar o fato como mera baderna.Vale lembrar que a manifestação começou às 16h. Todavia, a guerra só aconteceu quando a polícia iniciou a sua operação de desobstruir a via dos ônibus, usando todo o seu frágil poder: a força bruta. Eu participei da manifestação até o momento em que ela se desfez e virou conflito. No instante em que a desordem – estimulada por quem deveria contê-la - impediu que os gritos de protesto e as reivindicações fossem expressas sem o risco de ser preso ou apanhar, deixei de lado a minha indignação com o aumento e constatei que a guerra civil silenciosa se iniciava. E que, se não existir uma maior sensibilidade de todos, ela só acabará com algum tiro dado em nervosismo e uma morte. Ou pior, com a covardia mutiladora do mau uso de uma espada.
Enquanto essa guerra civil existir, vou continuar acreditando que as manifestações pacíficas e novas fórmulas de luta, que por ventura nascerem, devem ser usadas em busca dos nossos direitos. O direito de poder exigir um “happy end” para essa e muitas histórias sem ser chamado de maniqueísta ou ingênuo. E, de preferência, com um sistema de transporte barato, inteligente, inclusivo e de qualidade.
Leyberson Lelis é estudante de Comunicação Social da Universidade de Brasília
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